Um poema - por Ninguém

26/06/2020

Sexto movimento-feminístico da rua em lume.


A ESPOSA DO FERREIRO

subia a rua aos domingos

ia à casa do senhor

rezava baixinho, comungava

depois dava o braço ao marido

a mão ao filho

calava


voltava cabisbaixa

cabelo preso por uma vareta

lança enterrada na cabeça

a boca uma linha muda

e curta na face de cera

sob a saia tinha pernas

pois andava

e cuidava a direção dos sapatos


por que nome atendia?

não atendia

era a mulher do ferreiro

aquele cujas grades e portões de ferro

guardam as casas do mal que vem da rua


mas por trás de uma porta de madeira

opaca

antiga como os séculos

como os rios, como o cio

a mulher do ferreiro se encerrava

por sete dias


pois foi que num domingo incrédulo

um dia de brisa débil

soltou-se um feixe do cabelo

da esposa do ferreiro


embora sentisse uma perturbação

naquela pequena ordem

e os pés cogitassem outras ações

a mulher seguiu atada a seus homens

não ergueu os olhos

e não soube se alguém vira

as serpentes douradas

(górgona ignorada?)


haja um olho assistido ao evento...

e entrevisto ou imaginado

o animal que é seu cabelo

que por sete dias

ela penteia como para o domar

enquanto as grades e os portões

de todas as casas da rua

silenciosamente gestam

a ferrugem que as vai devorar

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