Um poema - por Ninguém
Terceiro movimento do livro inédito Rua. Não se sabe ainda quando estarão abertas as outras vias. Na dúvida, pergunte a Ninguém.
COMO QUE DESPIDA
não de vestes
mas das vísceras
assaltada por tanto sol
e som, tanto espaço
tantos olhos antropófagos
a assombrá-la
feito fossem os outros dos seus fantasmas
(oh, o que diria o barão de araraquara?!...)
uma casa que se deslocava
incógnita num caminhão-baú
agora agoniza, envergonhada
como que no avesso de ter sido arrombada
ante suas entranhas que o desastre espalhou
a grande avenida para.
a rua requer sangue
mas, pálida, é só uma casa esquartejada
o retrato elevado do bisavô
jaz arranhado no asfalto
panela que alimentou - lata
garrafa que embriagou - caco
o pônei de pau perdeu um pé
já não pode pinotar
(certo será sacrificado)
sapatos que debutaram
de repente perderam a cor
tudo o que nas coisas era gesto se dissipou
desde que a luz da rua as enxergou
antes, ancas fincadas na terra,
a casa ocultava antigos murmúrios
guardados entre o porão
e a planta baixa da família
na madrugada o soalho
às vezes resmungava e ranhava a escuridão
talvez na copa vidros inadvertidos se tocassem
expectorante pra asma noturna?
último vermute do senhor velho pai?
na sala de visitas um espelho expandia
para o alto a ausência fria dos corpos
no forro, o vento, morcegos,
aranhas sussurravam o medo
que tinham da manhã por vir
que chegou
com o tumulto o alarido
e a surdez da avenida
carne viva da cidade
onde o cochicho da novena?
onde o pigarro do avô?
a culpa dos herdeiros, onde?
onde o sexo e o pavor?
a luz ou a treva doméstica
a trégua de um terceiro estômago
onde a casa ruminava línguas,
gargantas, gavetas, gretas
idioma agora indecifrável
que o asfalto já dispersou