Um poema - por Ninguém
ERA UM HOMEM SÓ.
e morreu.
mas antes de morrer era um homem apenas
e parecia só
para os que quase nunca o viam na rua
era um homem só
no dia em que chegou
silencioso como a ponta de um espinho
a terra tomou só para si o pó dos seus passos
lá fora um cão se coça
um gato calcula um salto
um caco de vidro imita o sol
uma menina volta pra casa
mas evita a linha reta
alguém hesita bater uma porta
tudo está na rua
não está o homem só
sua casa: duas janelas frontais, fechadas
olhos que meditam profundamente
a escuridão de toda uma vida
[pudéssemos nós gente atarefada
ler da vida alheia o livro apócrifo
ou antes escrevê-lo...
foi dono de ilha no rio madeira
a enchente de 53 levou
voltou da guerra pai de mais um filho
batizou-o aparício são romão
cultivou 1 alqueire de dirijo
major ambrósio queimou-lhe a colheita
fundou a ordem irmãos do alvorecer
e a sempiterna noite inda nos cobre
por trás das cercas o sol porém se levanta
funcionário do universo
alcança cumes
atravessa bosques
tolda as flores negras da noite
quase assiste ao último crime da madrugada
e eis que da noite inconsútil
os homens já não se lembram
pois tudo agora está à vista
não está o homem só
a maré de luz sobe com o dia
inunda a rua e as retinas
só flutua a casa do homem só
ilha obscura
paredes nuas
por cujas frestas a casa soluça
a pequena vida do homem só
hoje um rádio gagueja estática
uma taça ou um espelho
ou um coração se estilhaça
um tostão tilinta um vestígio de fortuna
tosse tosse tosse
existência intermitente
mas amanhã tudo será silêncio
e a noite maior descerá sobre o homem só
e na escuridão de sua casa
primeira tumba do homem só
]ele dirá suas últimas vãs palavras
para ninguém ou para nada
ou as calará num derradeiro esquecimento:
todo homem morre só