Um poema - por Ninguém
NA RUA QUE AGORA AMANHECE
um casaco resta informe na calçada
guarda nódoas de sombras da noite
entre as dobras mal acordadas
da pele que ontem um animal vestiu
(extraído que fora dela o bicho
que há milhões de anos a habitava)
corpo restante dos corpos já idos
mímico torto e abismado
no último estúpido gesto
que o acaso gravou no sudário
na rua equatorial que se dilata
nenhum nativo mais se encanta
com um couro assim
tosão dourado fosco
semimorto e abandonado
na manhã da quarta-feira
fosse um pergaminho contaria
das praias de onde veio?
do naufrágio, seixos, conchas
que o trouxeram assim roto?
da última constelação que o viu
tombar na noite de terça-feira
quando os crimes da cidade
inda repousam sob os tetos familiares?
nesta manhã é só um corpo moxo
aos 40º de indiferença dos outros
corpos que quase pisam descuidados
esse andrajo do passado
ou odre onde repousa o futuro
de quem lhe passa ao largo