Tributo à melancolia

28/03/2022

1

Desnecessário pensar que é impossível termos tida por encontrada a lógica da operação do gosto. Uma vez li a história de um sujeito que detestava sua perna. Removeu-a, após o quê pôde levar uma vida feliz.

Não que eu queira ser feliz. Aliás, o que se passa é o contrário. Sou uma pessoa triste costumeiramente, porém de uma tristeza não simples, aquela que se tem e nos põe meditativos. E a verdade inocultável que me ocupa é a de que estou não só adaptado, mas completamente bem com isso. O que também não quer dizer feliz.

De qualquer maneira, como a maioria das pessoas, encontro-me em situação de procurar fora um espelho onde possa refletir-me. Um outro além que fosse igualmente capaz de me olhar com olhos pesarosos, donos de uma quietude terna e que apontam para a tentação do ermo, o foco no abismo de alguma hora que chegará contra os sons do dia.

E sim, eu a encontrei. Ela estava ali. Não posso dizer que se tratava de uma mentira.


2

Eu a conheci por acaso graças a uma mensagem, umas palavras que distraidamente se enviam. Perguntou se a loja abria aos sábados. Falei que sim. Poderia ter ficado por isso mesmo, se ela aparecesse por lá nem saberia quem era. Mas, havia uma foto, incrementada sob um filtro cinza. Posso estar enganado, mas não lembro de nunca ela ter uma fotografia tirada que não fosse cinza. Era sua identidade, sua forma representativa de olhar o mundo. A cor de uma manhã de chuva.

Esperei que chegasse, e chegou. As palavras fluíram naturalmente, porém o silêncio foi o que concedeu ao momento algum sentido.


3

Ela se sentava na cadeira, não dizia nada. Às vezes, uma frase esparsa. Então eu conduzia a conversa, e ela ficava a me olhar como se não soubesse sobre o que dialogava, ao mesmo tempo prestando atenção e emitindo gestos que concordassem comigo. Do meu lado, estava completamente encantado, embevecido. Como poderia ser como imaginava e estar ali, bem a minha frente, quando sabemos que é loucura levar a sério o menor esboço de fantasia, que o sonho é estúpido por demais, uma coisa pra tolos, a pior e mais perversa das mentiras?

Daí eu voltava-me outra vez mais para ela, que não sorria. Apenas mencionava fatos que não lhe causavam bem. Depois ponderava que era preciso esquecer. Diante daquela contenção, só pude saber que a adorava, apesar de não ter ideia do que fazer com tal registro.

Sentimentos belos nunca foram minha vocação. Nem dela. Éramos perfeitos até mesmo nisso.


4

Como saber se alguém realmente nos ama? Simples. Basta olhar para seus gestos supérfluos, os mínimos.

Certa vez disse a ela: você combina bem com vestido.

Ela respondeu: também concordo com isso.

Então, quando nos encontramos novamente, lá estava ela com um vestido floreado, de cores discretas e um tanto escuras, e que se alinhavam sublimemente a quem era, a sua beleza, ao seu modo de existência. Ao me ver, fez questão de denotar que sim, jamais poria a roupa se não gostasse dela, mas daquela vez era a minha pessoa que a peça se dirigia. Eu nem tive o que dizer. Fiquei comovido a ponto de ser incapaz de mover os lábios, fato com que ela não se preocupou. Estava bastante acostumada a que eu ficasse calado sempre que a via.


5

Também foi esta a última vez que nos falamos.

Tal como veio, ela evaporou. Nada mais que um devaneio, um luminoso delírio.

E, se perguntar o que houve, foi nada, ou menos. Duas conversas, um beijo, um encontro sem risco. Tudo calmo sendo exato como somos. poetas nebulosos do outono perdido.

De qualquer modo, sinto sua falta.

Tudo indica que ela não. É impassível seu percurso.


6

Mas o que posso afirmar é que o espelho existe, essa é uma verdade. E que se elucubrar mais sua partida é algo coerente. A alegria de um final feliz não combinava conosco. Devemos estar preparados para sondar o precipício. É o caminho dela, manter os baixos e furtivos olhos no vazio.

Na paisagem adiante o tempo passa. Correm para o nada infinitos rios.


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