Resenha: Dois Irmãos, por Bruno Oliveira
Se pudéssemos atribuir valor literário a uma obra pela quantidade de prêmios que possui, com certeza o livro do Milton Hatoum, Dois Irmãos, publicado em 2000, ganharia a alcunha de Magnus opus. Dentre as honrarias estão o Jabuti, o mais conceituado prêmio da literatura brasileira.
Milton Hatoum utiliza a cidade de Manaus como pano de fundo para desenvolver a maior parte da história. O aspecto urbano e a fidelidade para com o descrever do espaço é algo que chama atenção. Logo nas primeiras páginas é perceptível o quanto dos efeitos de avanços e recuos no tempo serão utilizados. Pois tudo que podemos saber ocorrem como flashs de memória, como se através dos narradores buscássemos a melhor forma de colocá-las em palavras. Por isso, os conflitos dramáticos são apresentados ao leitor de forma lenta. Digo narradores, porque existe uma co-relação entre principalmente três personagens para a narração: Halim e Domingas, os narradores indiretos, e Nael, o narrador responsável por construir um quadro claro dos conflitos. Lembrando, esses personagens são os mais nítidos como narradores, mas não os únicos, porque em toda obra haverá quem acrescente algo. Muito do que será contado a Nael virá em retalhos, através da oralidade, ou seja, a maior parte dos acontecimentos é transcrito em cima da incerteza.
Podemos montar um quadro ordenando começando por Halim, um senhor que veio do Líbano ainda criança, e que para ganhar a vida tornar-se mascate vendendo de tudo por toda Manaus. Em um dia de andanças encontra um restaurante, que começa a frequentar assiduamente, pois se apaixona por Zana, filha de Galib, o dono do estabelecimento. Passam-se alguns meses até que Halim crie coragem e recite gazais (poema lírico de origem árabe) para sua amada. Enfim, depois de alguns dias, casam-se. O pai da moça viaja ao Líbano e de lá não retorna. Esse episódio impulsiona o jovem casal a abrir seu próprio negócio. Zana, sentindo-se muito sozinha, convence Halim a terem filhos. Logo após tantos pedidos nascem Rânia, e os gêmeos: Yaqub e Omar, este quase morre enquanto recém-nascido o que causará por parte da mãe um cuidado excessivo que durará por toda vida. Os irmãos crescem. E num sábado festivo uma tragédia marcará a vida de todos os personagens envolvidos na trama; os gêmeos brigam e se saparam.
Antes do nascimento dos filhos, Zana adota uma "cunhatã" chamada Domingas. Essa que depois de uma tragédia na infância é levada para um orfanato controlado por freiras. Domingas é possuidora de uma visão panorâmica privilegiada da história, pois ao mesmo tempo em que consegue ser distante da família libanesa, é parte integrante desse conjunto. Por isso, consegue captar aspectos e tirar conclusões que ninguém dentro da casa teria.
A abordagem com que os temas e os motivos são colocados é o que torna diversificada a obra de Hatoum. Pois apesar de ser um assunto trabalhado, mas não esgotado, por inúmeras narrativas passadas - exemplos máximos é o conflito de Abel e Caim, na bíblia; e Esaú e Jacó, de Machado de Assis -, o autor amazonense consegue transformar o embate de Omar e Yaqub em algo peculiar. Milton monta uma a intrigada relação entre os gêmeos. Estes por serem possuidores de personalidades antagônicas - Yaqub é um ser fechado, sério, introvertido; e Omar é um boêmio, sempre à procura de aventuras - não conseguem viver harmoniosamente, quadro este agravado por uma briga que ocorre enquanto os irmãos ainda são jovens.
Um drama que fica em segundo plano, mas não por isso menos importante, é o de Nael, narrador que assume funções autodiegética e homodiegética conforme o desenrolar da trama. Filho de Domingas, Nael não sabe quem é o seu pai. Desconfia que possa ser um dos gêmeos, mas qual? Perguntas como essa ganham força no enredo.
Outros aspectos importantes afloram na história criada por Hatoum. Dentre tantas podemos citar a crítica ao período da ditadura militar instaurada no Brasil. É comum na narrativa do escritor amazonense a mescla entre o fato histórico e a ficção. Essa crítica ganha seu ápice em um episódio no qual, o professor de francês do Nael, mestre Laval sofre duras perseguições por parte dos militares. Esse capítulo é um dos mais fortes e interessantes, pois transborda sentimento, produto, talvez, de um fato biográfico ocorrido na vida de Milton, do qual foi também perseguido, enquanto participante do DCE (Diretório Central dos Estudantes) da USP, pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social).
O que também chama atenção é forma como o autor caracteriza as personagens mulheres; todas elas possuidoras de grande força e inquestionável beleza. Zana é controladora, influenciando muitas vezes a opinião do marido, e sendo complacente (até certo ponto, pois ela controla as relações amorosas do filho) com as aventuras boemias de Omar; aventuras essas que trazem diversos desconfortos e conflitos para dentro da casa dos imigrantes libaneses. Rânia se transforma, apesar de sua perceptível reclusão, na provedora econômica do lar; cuidando dos negócios da família, há tempos abandonados por Halim. E por fim, Domingas, nem escrava nem completamente livre, mas responsável pela casa, numa espécie de governanta conformada; seus excessivos cuidados a residência tornam-se sua obsessão.
Não podemos deixar de salientar a explanação que Hatoum faz da cidade de Manaus; um lugar promíscuo, onde o sexo é tratado como banal. Tudo isso é perceptível em muitas passagens da obra.
Enfim, o livro desde o início prende a nossa atenção. A cada releitura é uma nova forma de vê o mundo. O livro é bom, pois tem algo a dizer. Surge para concretizar o que há muito tempo faltava aos escritores amazonenses: reconhecimento. Os recursos estilísticos na criação da narrativa, do ambiente, na trama, dos personagens só atribuem mais qualidade a obra. Em muitos de seus ensaios, George Orwell falava sobre um conjunto de livros que mereciam ser resenhados, sem sombra de dúvidas a obra de Milton Hatoum encontraria lugar nesse panteão. Recomendo.