Resenha: O Santo Inquérito: Uma guerra santa contra a mulher, por Anne Caroline
Escrito no ano de 1966, O santo inquérito consiste em uma peça de dois atos criado por um dos maiores nomes da dramaturgia brasileira, Dias Gomes. O autor, aclamado pela peça O pagador de Promessas, retoma a crítica ao clérigo com algumas nuanças no enfoque, atribuindo atenção a uma guerra iniciada séculos antes: contra a figura feminina. A mulher, quando não é serva da igreja, passa a ser sua pior inimiga e "um dos principais instrumentos do mal".
O enredo narra a história da jovem Branca, moça ingênua de 20 anos, filha de Simão Dias e noiva de Augusto. A história se passa em meados de 1750, no interior da Paraíba, e teria sido inspirada no episódio histórico do julgamento de Branca Dias. O próprio autor afirma, sem qualquer dúvida quanto à veracidade, o fato de Branca ter realmente existido e que sua "lenda" é muito conhecida no Nordeste, chegando inclusive a compará-la com Joana D'Arc. Na peça, Branca nos é apresentada como uma moça de grande beleza que, ao salvar o padre da cidade de um afogamento com uma respiração boca-a-boca, acaba por estreitar relações com ele. Ao conversar um pouco mais com Branca e reconhecer toda a ingenuidade da moça, Padre Bernardo se convence que, por conta dessa inocência, a jovem se encontra em constante perigo, e é seu dever salvá-la. No início, o que foi apresentada com uma relação de preocupação, logo vai demonstrando a faceta de um sentimento carnal que, inconscientemente ou não, leva padre Bernardo a convencer-se que Branca é um instrumento do pecado e é culpada por heresia, fazendo com que ele a leve ao tribunal do santo inquérito.
Quando a personagem de Branca nos é apresentada, sua maneira de ver o mundo, seu "espírito livre" e sua concepção pura sobre o amor de Deus vão contra o que a igreja determinou durante toda a sua história para uma fiel. Tudo isso, atrelado ao fato de que Branca sabe ler, é bem instruída e também uma grande apreciadora de livros, causa um estranhamento imediato no padre, pois ela foge de alguns dos princípios básicos da submissão de uma mulher cristã. Lembremos que essa não consistia em uma instrução para mulheres ditada unicamente pelos religiosos, mas por muitos homens que reforçaram essa misoginia através de tratados intelectuais de suas épocas. Tomemos como exemplo um excerto do famoso tratado La perfecta casada, do poeta espanhol Luiz De Leon:
Porque, así como la naturaleza, como dijimos y diremos, hizo a las mujeres para que encerradas guardasen la casa, así las obligó a que cerrasen la boca; y como las desobligó de los negocios y contrataciones de fuera, así las libertó de lo que se consigue a la contratación, que son las muchas pláticas y palabras. [...] por donde, a sí como a la mujer buena y honesta la naturaleza no la hizo para el estudio de las ciencias ni para los negocios de dificultades, sino para un solo oficio simple y doméstico, así les limitó el entender, y por consiguiente, les tasó las palabras y las razones[1] (DE LEON, 2016 [1584], p. 82).
Sendo assim, não é apenas ao padre que Branca causa certo temor, mas a todos os representantes da igreja e da sociedade patriarcal que a veem como um risco e perigo de abalo à clerezia como instituição e sistema. Essa é a história que se repete através dos anos, principalmente na inquisição na era medieval: mulheres que transgrediam e pensavam de forma divergente à igreja, ou mesmo que faziam qualquer coisa que fosse considerada fora dos padrões ou um risco à ordem cristã, possuíam a mínima chance de escapar da fogueira ou de castigos piores.
A santa inquisição claramente não fez apenas vítimas do sexo feminino, mas elas eram claramente seus principais alvos, e a grande prova disso foram as incansáveis caça-às-bruxas e a criação do Malleus Maleficarum, conhecido como O Martelo das Feiticeiras, onde se é ensinado como reconhecer, denunciar e castigar (das formas mais cruéis possíveis) mulheres que poderiam ter alguma ligação com a bruxaria. Não é necessário saber detalhes da História para se ter uma noção da quantidade de mulheres inocentes que foram torturadas e morreram durante essa caçada.
Dias Gomes, ao construir a personagem de Branca, faz com que reconheçamos que a personagem realmente não faz nada de mal e seu único pecado é a sua inocência, mas está diante de um tribunal regido por homens que se convencem que estão à serviço das leis santas e da salvação da alma da jovem, quando na verdade estão apenas trabalhando em vista da proteção de uma ideia pré-estabelecida e de um sistema de ideias que não deve mudar nem sofrer ameaças de mudança. Talvez a grande questão seja a de que os mesmos saibam disso, mas tomam para si a decisão de tentarem enganar a si mesmos, convertendo-se em verdadeiros homens a serviço de Deus. Branca, para eles, representa a fagulha de uma ameaça. Mesmo sabendo defender-se segundo a bíblia - pois já havia lido-a e tecido suas próprias interpretações - o julgamento de Branca já tem um fim traçado desde o início. E não é apenas por acreditarem que Branca está possuída que o clero está tão interessado na sua punição: Branca é, além de tudo, a figura que mais assusta o homem conservador, principalmente os cristãos de 1700, pois ela, tendo sido capaz de ler e formular suas próprias críticas, está em pé de igualdade, podendo defender-se coerentemente de qualquer acusação, defendendo com unhas e dentes seu ponto de vista sem deixar-se curvar. E isso, para uma igreja governada pela ideia pré-concebida de que a mulher deve servir ao homem - pois a um homem foi entregue a chave da igreja -, Branca representa um perigo eminente. Ela também, assim como o Zé do burro, de O pagador de promessas, representa o que Gomes mais almejava: uma igreja justa, livre dos valores formais e preenchida de valores humanos e puros, tolerante e em que as dádivas da natureza possam ser usufruídas e compartilhadas. O amor na sua forma mais pura e menos formal.
Além disso, o que a leva a ser julgada vai muito além do que o os homens atribuiriam como "intervenção maligna". Inconscientemente, o Padre atribui todas as características de Branca ao sentimento que aflorou em si mesmo, fazendo-se acreditar que o "demônio" se apossou dela e faz uso da mesma para levá-lo a cair em tentação. Ele tenta se convencer de que levar Branca ao tribunal é uma forma de salvá-la, mas ao decorrer da peça e das falas, ações e pensamentos do padre, fica bem claro que o julgamento de Branca faz parte da sua punição própria, por sentir-se tentado e dominado por desejos carnais. Na literatura, tal relação entre o personagem do servo da igreja que jura castidade e se sente tentado carnalmente, colocando a culpa de tais desejos completamente na mulher e na força maligna presente nela, vem sendo trabalhada em muitas outras grandes obras, como em O corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo, com o personagem do cruel arquidiácono Claude Frollo e sua paixão carnal e não correspondida pela cigana Esmeralda.
Embora tenha sido escrita há décadas e trate de um assunto com suas raízes na santa inquisição medieval, a obra de Dias Gomes consegue ser incrivelmente atual ao nos trazer cenas que demonstram claramente tipos de abuso emocional e violência psicológica que apenas recentemente vieram a tona como alvos de debate. Um exemplo de uma dessas formas de violência é a, hodiernamente, chamada gaslighting, um tipo de agressão que tem como objetivo principal dizer ou fazer coisas com a intenção de manipular a mulher, diminuí-la e fazê-la duvidar de si mesma, da sua memória e da sua lógica. O Padre e a inquisição, mesmo que não tenham consciência disso, aplicam essa manipulação várias vezes, fazendo com que Branca em determinados momentos realmente duvide de si e se é inocente como imagina.
A obra de Gomes consegue nos transmitir o poder que a manipulação ou mesmo as interpretações erradas podem exercer numa situação de vida ou morte, e como o sistema religioso era disposto a proteger sua ordem, principalmente de mulheres que representavam alguma ameaça a ele. Talvez o único equívoco de Dias Gomes tenha sido colocar, antes da peça, um breve comentário em que revela suas intenções e a representatividade dos personagens, não dando espaço para o leitor fazer isso ao decorrer da leitura, formulando suas próprias interpretações.
Ainda assim, a peça de Dias Gomes é uma importantíssima referência e crítica não apenas aos tribunais do santo inquérito que condenaram vidas desde os anos de ouro da igreja católica, mas também aos princípios que guiaram tais tribunais, sua perseguição ao sexo feminino, a manipulação de informações, a intolerância e misoginia que até os dias atuais ainda exercem reflexos nas sociedades mais conservadoras.
REFERÊNCIAS
GOMES, Dias. O Santo Inquérito. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
[1] "Porque, assim como a natureza, como dissemos e diremos, fez as mulheres manterem a casa trancada, também as forçou a fechar a boca; e como ela as desvinculou de negócios e contratações externas, ela as libertou do que se segue à contratação, que são as muitas conversas e palavras. [...] Então, assim como a natureza não fez a mulher boa e honesta para o estudo das ciências ou para negócios difíceis, a fez para um único comércio simples e doméstico, limitando assim seu entendimento, e, consequentemente, avaliando as palavras e os motivos" (tradução nossa).