Na ceia
-Estamos chegados, aqui viemos, essa é a situação. Eu estou na mesa horrendamente decorada e vocês também, eu irei provar o pernil mofado e vocês igualmente, porque de fato é o que somos, um fracasso estúpido. Não, não quero estragar a festa. Vocês sabem, todos os anos faço o discurso da discórdia. Vocês gostam, não digam que não. Riem-se. Então dessa vez serei mais breve e me coloco apenas para contar que os odeio, sim, do fundo de minhas forças. Engraçado, não sei porque reprimi durante tanto tempo esses afetos. Acaso odiar não é criador? Não foi assim que se construiu a civilização? Ah, certo, estou divagando. Serei objetivo. Ok, ok. Não tem nada de grande no que estou dizendo. Então aí vão minhas afirmações comezinhas. Aquela lá não diz nada que não seja dela mesma, deveria conversar com o espelho. Já a do lado me manda mensagens ridículas de motivação, apesar de saber que as detesto. Você, cara, é um palhaço chiliquento que fica histérico e só consegue as coisas no grito. Já este é fofoqueiro, não tem um assunto para tratar que não da vida dos outros. E todos vocês, todos vocês são desprezíveis para mim, não porque eu seja melhor, porque também sou um babaca, vocês o sabem e o confirmam, a cada gesto que me observam fazer. Mas eu aceito, ouviram? Concordo com cada uma das frases proferidas, porém sou um babaca que sei que sou, ou melhor, descobri, e por isso a minha decisão de não os procurar, de ficar calado na minha e rodando pelos cantos, porque é melhor ser sozinho, exato, exato, é muito melhor ser sozinho do que correr o risco de agir como um imbecil sociável, que no final é isso que vocês são, e se me perguntarem porque afinal vim aqui digo que é apenas para lhes dizer isso, para lhes contar as verdades inóspitas que não pensam em escutar durante a noite em que estamos, porque quero, de algum modo, destruir o que resta de sua falsa cordialidade e de sua hipocrisia, deixar ao menos uma marca para que se lembrem enquanto julgam os outros que no final é seu esporte preferido que também faço porém não do modo moralista e mentiroso que é o de vocês; eu não o nego, é um prazer que me move. Já para vocês é pura perversidade fingida. Então eu vim aqui para tal, para tal, para contar e dizer o que disse, assim gritando, a fim de que não reste quem não me ouça. Ah, pretendem se levantar? Querem ir embora? Por favor, não se incomodem, sou eu que vou. Fiquem aqui e podem continuar se empanturrando e enchendo a cara que é só para o que prestam. Eu nem para isso. Ganhei de todos. Por ser pior é que lhes estou à frente. Boas festas a vocês também.