Márcia Antonelli: literatura de bar em bar, por Luana Aguiar

16/06/2020

"Há uma outra música que toca dentro de nós, Armando. Bem ao avesso do que realmente somos. Como uma Blacker & Decker serrando em um dos nossos ossos. Não se iluda, Armando, a vida é imperfeita como uma criança com câncer caminhando perdida em uma estrada vermelha ouvindo Rachimaninoff"

Era novembro de 2019 e eu bebia um drink no Basquiat, no centro de Manaus, quando conheci Márcia Antonelli. Ela veio até mim, depois de falar com outras pessoas numa mesa próxima, e me ofereceu alguns de seus livretos - todos produzidos e impressos de modo independente, sem vinculação com editora, como a própria escritora informou. "Não se preocupa, não sou fanzineira, eu odeio fanzineiros!", disse também.

Comprei Hematofilia, escrita em 2018, uma narrativa sobre a relação entre Armando, professor "culto", e Kropova Ivanovina, musicista croata da filarmônica de Manaus - que transita entre o amor e a loucura, o desejo e a dor. É uma história densa e psicológica, de cunho confessional e violento. (E, quando digo violento, me refiro a todos os sentidos da palavra). Apenas lendo para saber. É o que recomendo. 

Há poucos meses, ainda em tempos inatingidos pela pandemia, tive a felicidade de ver, novamente, a escritora e outros "poetas marginais" em praças e bares do centro da cidade, bebendo, conversando, declamando "Rosa de Hiroshima" e outros poemas. Essa produção e divulgação feita não só por Antonelli, mas outros artistas independentes, de bar em bar, pelas ruas, nos lembra o que, na década de 1970, chamava-se de geração mimeógrafo, movimento em que intelectuais, poetas e artistas dos mais diversos segmentos passaram a divulgar as suas produções informalmente, contra os meios de divulgação tradicionais.

A geração mimeógrafo surgiu durante a repressão do regime militar brasileiro que impunha censuras na seleção de obras para as editoras, nos espetáculos de teatro, enfim, a toda sorte de livre expressão da arte. O movimento possui esse nome pois, como é de se imaginar, era com esse aparelho - o mimeógrafo, instrumento em que se fazia cópias em grande quantidades - que os artistas imprimiam em papel suas obras e as vendiam nas ruas, praças, universidades, de mão em mão e a baixo custo. Foi a forma que esses intelectuais - nomes como Torquato Neto, Ana Cristina César, Chacal e outros - encontraram, à época, de divulgar uma arte independente e contracultural.

Diante disso, podemos nos questionar: atualmente, que espaço estamos dando a esses artistas? Ou melhor: que olhar lançamos a essa literatura produzida fora dos padrões da grande mídia e do mercado editorial (em grande parte elitista, racista e patriarcal)?

Após o exaustivo - mas necessário - confinamento, vamos todos ao Basquiat (ou ao Odette), às praças do centro, às ruas, que também são lugar de literatura.

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