Crônica: Perfume Selvagem, por Miller Brito
12/05/2021
A minha consciência sussurra que sou louco. Há um desequilíbrio existencial em quem recusa o sono e aguarda religiosamente a madrugada somente para ter uma fagulha do absoluto silêncio. Nesta capital, neste bairro, insana espera utópica.
Gatos correm no telhado, galos cantam, cães latem, carros passam, memórias gritam.
A garrafa de café está vazia, na caneca ainda resta um pobre gole. Mas não mais pobre do que o meu contentamento.
Não procurei escrever esta crônica com o intuito de agradar leitor algum, visto que não estou agradando nem mesmo a mim.
É interessante como um simples carapanã pode ter uma influência tão saudosista no rumo das coisas. De repente eu me vejo transportado para um
novo cenário, o passado que me faz criar a ilusão de um futuro espelhado no que já vivi. Novamente a minha consciência condena a minha loucura.
Lembrei de uma experiência na zona rural. Eu estava precisando do silêncio para escrever um poema sobre o amor, o que é irônico, pois o amor no sentido romântico por mim não é tão valorizado. Na busca pelo silêncio perfeito, decidi caminhar pela mata. Com poucos minutos de caminhada eu já estava debaixo de uma castanheira que não fazia parte do cenário da época que eu ali morava. Distraído nas lembranças eu não percebi que me aproximei de um jacaré. Por sorte, fui salvo pelo latido de um vira-lata que teimou em me seguir. Mas ele me salvou duplamente, pois quando recuei assustado, segundos depois caiu um ouriço de castanha, justamente no mesmo local que antes eu estava. Aquele pesado volume fatalmente cairia na minha cabeça e hoje você não estaria lendo entusiasmado este texto. Herói improvável para uma situação inimaginável.
Enquanto escrevo consigo imaginar a sua dúvida a respeito da veracidade dos fatos. Conhecimento de mundo é importante e eu tenho um pouco, por isso
considero importante compartilhar vivências.
Após o incidente eu continuei a minha busca pelo silêncio, mas já não recusava a companhia do Dob, o vira-lata. Minutos depois chegamos ao lugar desejado, um antigo roçado que fiz com a minha mãe. Isso foi no ano de 2005. Lembro que enquanto trabalhava, sempre imaginava como seria a vida longe dali, ansiava pelo dia que finalmente chegaria a minha partida. Menino tolo, queria tanto sair da selva, mas foi morar entre os selvagens da capital.
Enquanto a minha mente era inundada pelo saudosismo, minha consciência disse que seria uma boa ideia adormecer um pouco, experimentar uma nova experiência. Foi um sono breve, mas ao acordar, minha respiração estava leve, era possível sentir o cheiro de cada espécie de planta, cada pequeno animal. Os pulmões estavam de férias da poluição urbana.
Eu não encontrei o absoluto silêncio, muito menos escrevi o tal poema romântico, mas respirei o perfume selvagem.
A chuva chegou, hora de dormir.
texto publicado originalmente no blog Escrevendo a Eternidade, que pode ser encontrado aqui:
https://www.escrevendoaeternidade.com/2021/05/cronica-perfume-selvagem.html?m=1