Considerações sobre o estoicismo na obra Tranquilidade da Alma, de Sêneca, por Bruno Oliveira.
Muito do que conhecemos sobre o fundador do estoicismo provém das obras de Diógenes de Laercio. É partir dele que sabemos da lenda de que, após um naufrágio na costa da Ática, um grande comerciante perde todas as suas mercadorias e, por conseguinte, suas riquezas. Completamente desencantado com a vida, Zenão de Cicio começa a desenvolver a sua filosofia voltada principalmente para a questão de como passar pela existência sem ser atingido pelas paixões a fim de conseguir a plena felicidade.
Esta corrente filosófica é influenciada por dois homens e uma escola. De Heráclito, o estoicismo absorveu a concepção de logos; o universo é feito de éter, o fogo artesão-divino, uma entidade divina racional. É este quem destrói e constrói o universo em ciclos regulares sendo da sua natureza realizar o que é certo, um destino incondicional, através da harmonia dos contrários ou opostos.
"O estoicismo compreende uma razão suprema, natureza, que é a causa e determinação de tudo o que acontece. Há uma harmonia imanente no universo, expressão da racionalidade da qual a natureza é portadora. A natureza é a vida universal (o próprio Deus).". (CÂMARA, 2014, pp. 1-7)
Foi em Sócrates que o estoicismo encontrou dois alentos importantíssimos. O primeiro deles está relacionado a própria figura de Sócrates, do homem voltado para a crítica constante de si, dos seus conceitos, da sua própria vida; um exemplo de homem racional e integralmente forte. O segundo conceito adquirido de Sócrates é a capacidade de perceber que os desejos por bens, prazeres, pessoas, poderes são os principais motivos responsáveis pelos males e dissabores da nossa alma. Essa maneira de pensar vem corroborar com o que os cínicos pregavam.
Dos cínicos, os estoicos adquiriram o pensamento de que há apenas um bem único e simples a ser atingido: a felicidade, que é um estado constante de bem-estar. Para tal intento ser conquistado com sucesso, é necessário o uso da razão em consonância com o fogo artesão-divino, ou seja, para um indivíduo ser feliz é necessário que se aceite as coisas como elas são.
"O estoicismo compreendeu a felicidade como uma atitude da vontade. O homem é feliz quando deseja que as coisas sejam o que são. A ideia expressa nessa atitude é de que se deve viver de acordo com a natureza, sendo um ser racional, consentindo com a racionalidade do destino" (CÂMARA, 2014, pp. 1-7)
É dos cínicos também que o estoicismo irá absorver a maneira de criticar os costumes da sociedade, além de enfatizar o caráter prático e sistemático da filosofia.
O estoicismo floresce em Roma no Alto Império com as figuras de Sêneca, sendo este o principal divulgador do pensamento estoico romano, Epicteto de Hierápolis e Marco Aurélio, o imperador.
A constituição do indivíduo romano perpassava na atuação pública e se acreditava na necessidade de se possuir altos valores; o homem romano deveria se colocar como um exemplo de sabedoria e virtude. "A moral romana possuía uma orientação nítida, cujo fim era a subordinação do homem à cidade" (LUZ, C.; VENTURINI, R, 2007, pp. 3-7).
Ao mesmo tempo em que havia um ideal de conduta do homem público romano, é quase impossível pensar em Roma e não salientar as concepções de devassos, de assassinos, corruptos, etc. que esse povo carregava. O estoicismo enquanto maneira de viver tem como preceito uma visão harmoniosa, uma necessidade de não se abalar perante os intemperes da vida, ou seja, não se levar pelas paixões. É assim que a filosofia estoica encontra solo fértil em Roma e acaba se tornando uma resposta ao empecilho do homem virtuoso
Aproximadamente entre os séculos 4 a.C. e 1 a.C. nasceu em Córdoba, no seio de uma família abastada, Lúcio Aneu Sêneca. Ainda criança se transferiu para Roma. Desde a sua juventude, Sêneca estudou, principalmente, estoicismo e neopitagorismo. Por volta dos quarenta anos, como questor, algo equivalente a um procurador, o primeiro estágio na política romana, Sêneca ingressou nas questões públicas. Lá pelo ano 49 d.C., no então governo de Cláudio, Lúcio tornou-se o principal mentor intelectual do príncipe Nero, este ainda com 12 anos de idade. Posteriormente, por divergências políticas, Sêneca foi acusado de estar envolvido numa conjuração para derrubar Nero e, por volta do ano 65 d.C., Aneu Sêneca foi condenado à pena capital. Morreu em 19 de abril.
Sêneca foi um indivíduo que ao longo da sua vida se destacou numa gama diversa de gêneros e assuntos. Há composições poéticas trágicas, peças de teatro, sátira e diálogos. É esse último que nos interessa no presente trabalho.
Devemos entender esses diálogos como cartas, que Sêneca escreveu e publicou em diferentes épocas. Ao todo, dentro desse grupo, temos doze obras, que são as seguintes: Sobre a Providência, Sobre a Constância do Sábio, Sobre a Ira, Consolação a Márcia, Sobre a Vida Feliz, Sobre o Ócio, Sobre a Tranquilidade da Alma, Sobre a Brevidade da Vida, Consolação a Políbio e Consolação a Hélvia. É importante salientar que as datações dessas obras são imprecisas, sendo possível apenas estabelecer os períodos de maior probabilidade da composição. A obra que aqui nos importa, por exemplo, Sobre a Tranquilidade da Alma foi composta e publicada possivelmente por volta de 50 à 62 d.C.
O que se sabe de fato é que a obra foi direcionada a Aneu Sereno, amigo próximo de Sêneca. Sereno era em Roma pertencente ao grupo de cidadãos abastados e que conseguiu, com a ajuda de Lúcio, ingressar como chefe dos bombeiros. Um cargo importante numa cidade atingida constantemente por incêndios.
A carta é dividida em duas partes. Inicialmente, em uma longa fala que perdura todo o primeiro segmento da obra, Sereno procura, por ser um indivíduo ativo no aprimoramento moral, os conselhos de Sêneca. Este, por conseguinte, avança respondendo a Sereno até o fim do diálogo.
É importante salientar que não encontramos nessa obra uma exposição sistemática das doutrinas e princípios da teoria filosófica do estoicismo. Ao que parece, Sêneca procurava encorajar no leitor uma "disposição interior que pudesse resultar na prática de condutas estabelecidas como positivas pela doutrina moral estoica" (SÊNECA, 2014, pp.16-179). "Esta minha fala diz respeito às almas imperfeitas, fracas e desequilibradas, não ao sábio. Este não deve andar com passo tímido nem tateante" (SÊNECA, 2014, pp.135 -179).
O texto começa com a fala de Sereno sobre os seus vícios e este constata que se encontra "num estado tal que, apesar de não ser o pior, é igualmente lastimável e penoso: não estou doente nem saudável" (SÊNECA, 2014, pp.122-179). A isso, Sereno denomina "Náusea", que ocorre quando a alma hesita em duas escolhas: uma má, que entenderemos como os prazeres, os desejos, e outra boa, o aprimoramento moral. É essa espécie de enfermidade que fará Sereno explicar sua situação a Sêneca: "Que enfermidade é essa, de uma alma que hesita entre duas vias, sem inclinar-se com força nem para o bem, nem para o mal, não posso explicar-te de uma vez, mas por partes". (SÊNECA, 2014, pp.122-179).
Podemos destacar três espécies de perturbações que Sereno relata: a) os luxos, as riquezas; b) os prazeres, os desejos; e c) o interesse próprio. Sereno termina a carta pedindo a Sêneca conselhos para que não sofras mais as perturbações dessas enfermidades. E este começa a escrever a sua resposta a aquele.
Sêneca deixa claro que o pedido de Sereno é dificultoso e elevado, pois tal atitude só é possível aos deuses. A essa atitude Sêneca denomina TRANQUILIDADE (conceito fundamental para o estoicismo). E que para ser atingido tal estado é necessário que primeiramente se exponha o seu vício, que pode ser de qualquer espécie, mas que tem como efeito o: descontentamento consigo mesmo. Segundo Sêneca, a causa está relacionada aos desejos tímidos e mal satisfeitos. Surge então a infelicidade.
Sêneca passa então a listar alguns passos para combater a infelicidade, que são:
O primeiro passo é procurar obrigações úteis para si e para a comunidade.
O segundo passo é examinar, com o pensamento crítico, três pontos da nossa vida: a) a nós mesmos, pois sempre achamos que podemos mais do que de fato somos capazes; b) as atividades que empreendemos ao longo dos dias, para detectar quais são úteis e quais não são; e c) as pessoas que nos cercam, a fim de saber se são dignas, virtuosas, éticas e felizes.
O terceiro passo é refletir sobre os nossos patrimônios, que Sêneca, considera o motivo maior dos problemas humanos. Sermos gratos por aquilo que temos: saúde, moradia, alimentação, vestimenta. Jamais cobiçar o que os outros possuem. É importante também afastarmos das pompas e levar em conta a utilidade das coisas.
O quarto passo é também de igual importância. Apesar de sermos homens e, portanto, frágeis, fracos e imperfeitos é de extrema necessidade que procuremos dar o melhor de nós, demostrar o nosso valor através das virtudes e integridade.
O quinto e último passo que conseguimos destacar na obra é: temer a morte jamais, já que essa é uma condição necessária da existência. E aceitando tal condição, é fundamental que todo o esforço deva remeter a algum motivo, ter em vista algum fim.
É através desses passos que Sêneca apresenta os meios para se atingir e preservar a tranquilidade da alma na existência.
CÂMARA, Uipirangi Franklin. A porta e o jardim, uma introdução ao epicurismo e ao estoicismo da Grécia pós-socrática. Revista eletrônica do curso de pedagogia das faculdades OPET.ISSN 2175-1773,1-11, junho de 2014.
DROIT, Roger-Pol. Um passeio pela antiguidade - na companhia de Sócrates, Epicuro, Sêneca e outros pensadores. São Paulo: Bertrand Brasil, 2012.
LAERCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: UNB, 2008
LUZ, C.; VENTURINI, R. O pensamento estoico e a sua influência para a formação do homem romano do século I d.C. VI JORNADA DE ESTUDOS ANTIGOS E MEDIEVAIS. Trabalhos Completos. Sergipe: UEM/PPE, 2007
SÊNECA, Lúcio Aneu. Sobre a ira. Sobre a tranquilidade da alma. Diálogos. Tradução, introdução e notas de José Eduardo S. Lohner. São Paulo: Editora Pequim. Companhia das Letras, 2014.