Cartas a Anna, por Luana Aguiar
As cartas que compõem Cartas a Anna foram encontradas e recolhidas no apartamento de Lúcia de Oliveira*, em São Paulo, alguns dias após seu suicídio, em abril de 2020. Trata-se de escritos a uma jovem chamada Anna, sobre a qual não possuímos mais informações além das que nos aparecem nas epístolas. Ao leitor da segunda década do século XXI pode parecer estranho o hábito da autora de escrever cartas, mas supomos que isso se deve ao fato de ocupar a profissão de jornalista, como é constatado nos escritos, e que, além disso, não as escrevia com a intenção de enviá-las a sua destinatária, mas sim de canalizar e expurgar os seus pensamentos. A primeira das cartas foi escrita no final do ano de 2017 e consta a seguir.
02 de dezembro de 2017
Nunca pensei que eu pudesse viver até os 30 anos. Acreditava que talvez eu fosse atropelada aos 24, um avanço distraído, a cabeça deitada sobre o meio fio, morte rápida e quase indolor, de uma forma que talvez nem houvesse tempo para ver um filme da história da minha vida em alguns segundos, como falam as pessoas que passaram por experiências de quase morte; ou talvez eu decidisse, aos 27, de uma vez por todas, em tomar o coquetel final, como os teus grandes ídolos musicais, encontrada com a boca escancarada dias depois do ato por algum vizinho que ficou incomodado com o mau cheiro saindo do meu apartamento.
Tu sabes que, de fato, a vida nunca me foi prazerosa a ponto de afirmar - como aqueles que tu chamavas de bocós e que por tanto tempo concordei e caçoei junto a ti - "é para isto que eu vivo e coisa e tal", o ouro de tolo. Mas no próximo domingo será meu aniversário e a única coisa que consigo pensar é que talvez eu não devesse ter ido embora, Anna.
Aniversário é um modo de dizer, claro, pois não haverá festa, como todos os aniversários desde que saí da casa dos meus pais e vim morar aqui. É só a data marcada no calendário que me faz lembrar que mais um ano passou por mim, como quem passa por uma loja de sapatos e olha de relance para uma promoção, mas a descarta. Eu odeio essas comemorações, tu talvez te lembres, e mesmo que houvesse eu não teria quem convidar aqui nessa cidade. A vizinha reumática que perguntou qual a minha etnia, quando eu disse de onde eu vinha? O casal de gays que me olha com desprezo toda vez que eu digo "bom dia" nos corredores? Coisa de gente inconveniente, eu descobri, essa mania de dar bom dia a desconhecidos. Aqui as pessoas mal se olham nos olhos e acho que já me acostumei.
No jornal também não consegui criar vínculos que ultrapassassem o café da tarde na copa do trabalho, conversa jogada fora, assuntos sobre o jornal e futilidades da vida - tudo o que sei fingir muito bem. Mas quando eu os ouço falando sobre novas aquisições, investimentos ou viagens a Fernando de Noronha, me vêm à cabeça que nenhum deles gritou de felicidade e me abraçou quando eu consegui andar de bicicleta pela primeira vez, tardiamente, aos dezesseis anos; nenhum deles fugiu de casa para me dar um abraço, no meio da noite, quando eu disse que meu pai havia me batido por ter quebrado o retrovisor do carro que dirigi sem permissão, e ainda permaneceu na cama conversando comigo noite adentro para que eu me distraísse e não pensasse a dor das feridas causadas pelo cinturão; nenhum deles, como tu, segurou a minha mão e me fez sentir um estado de liberdade e euforia, ou pelo menos a ilusão daquilo que possa ser a liberdade. Naquela época eu pensava que nunca iríamos nos separar.
*Nome fictício para preservar a identidade da escritora.