Cartas a Anna (2), por Luana Aguiar
30 de dezembro de 2017
Quando me olho no grande espelho oval da sala, vejo a ti, Anna. Sempre. Mesmo que não tenhamos nos visto há tantos anos. Não sei das linhas do teu rosto mais, o tamanho do teu cabelo ou o quanto mudou desde que nos vimos naquele dia quente em frente a tua casa. Tu estavas com o cabelo ruivo e curto, muito curto. Eu fiquei assustada no instante em que abriste a porta, não sei se tu percebeste. Eu tentei disfarçar, claro; mas, sim, me assustei, eu gostava do teu cabelo comprido porque me fazia lembrar a grande deusa do amor. Mas inconstante do jeito que eras, eu já deveria ter me acostumado com as tuas mudanças repentinas.
Sim, eu nunca te disse isso, mas quando teu cabelo estava ruivo e comprido eu te imaginava como Afrodite. Mas, enfim, de qualquer forma, permaneceu em minhas lembranças, então, a imagem do teu semblante e do teu cabelo naquele último dia em que poucas palavras falamos, mas muito foi dito.
Amanhã é véspera de ano novo e a cidade parece ter se embriagado por uma melancólica esperança, como em todos os finais de ano, e por uma nostalgia hipócrita, puramente hipócrita, pois ninguém realmente foi feliz durante o ano que se passou. Nem no anterior. Como poderíamos? Tu sabes muito bem. As marcas do golpe permanecem até hoje; o que talvez tenha te afetado muito mais do que a mim, se continuas com o mesmo engajamento político que tinhas naqueles tempos.
Aquele último dia. Tu sabes muito bem que a mudança no teu cabelo não foi a única surpresa que tive; a principal estava mais abaixo, no ventre. Às vezes, olho o meu (e o teu) reflexo no espelho e finjo que estou conversando contigo de novo, naquele dia, na frente da tua casa, o suor escorrendo pelo rosto, o sorriso amarelo de canto. Ou melhor, finjo que estou falando o que há muito queria ter falado, mas fui impedida não por ti ou qualquer outra pessoa, mas por mim, que tentava transparecer que estava tudo normal e que aquela notícia havia sido recebida com felicidade.
Hoje, sei que existem
momentos na vida que nunca são esquecidos, por mais que tentemos, por mais que
queiramos muito. E aquele dia foi um deles.